O posicionamento político, ético e pedagógico de professoras e professores da Rede Municipal de Educação de Salvador, ao recusar a adoção do material do Programa AlfA e BETO, trouxe novamente à tona um importante debate para a sociedade brasileira, que é a questão da representação social da população negra, o combate ao racismo e a outras formas de discriminação. Tenho participado desse debate social ao longo dos últimos 30 anos, como militante do movimento negro, educador e um dos fundadores do Instituto Cultural Steve Biko, referencia educacional no acesso de afrodescendentes ao ensino superior e  premio nacional de direitos humanos/1998, e  acompanhado a mobilização dos coletivos de educadores de Salvador como Presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal, por reconhecer a centralidade das questões que motivam esse conjunto de educadores, tanto para a educação pública de qualidade para as crianças e jovens, atualmente nas escolas, quanto para a consolidação de uma sociedade democrática, onde todos possam exercer de forma plena seus direitos e deveres.

Críticas 

As críticas ao material que integra o Programa Alfa e Beto, que inclui um texto do livro “As bonecas de Fernanda”, de Alexandre Azevedo não se restringe a uma análise parcial, descontextualizada ou descomprometida da pauta da educação local. Estão embasadas nos argumentos elencados pelas professoras/es, pedagogas/os, mestras/es  e doutoras/es, que amparados em seus estudos, em suas vivências práticas de formação, no conhecimento das realidades concretas de vida dos estudantes e de suas famílias, bem como, na realidade das escolas da rede pública municipal.

Defendo que as ações públicas que visem a melhoria da prática docente, em quaisquer dos níveis de educação formal, devem levar em consideração o reconhecimento das competências pedagógicas e metodológicas das/os professores que vivem o “chão das escolas”, pois, são capazes de construir uma metodologia eficiente, capaz de educar uma criança, superando  as barreiras impostas pelo sistema.

 Avanços pela Igualdade 

A sociedade brasileira tem avançado em seus esforços em prol da igualdade, e um dos principais avanços se deveu ao reconhecimento da existência do racismo.  O que tornou necessário um conjunto de políticas públicas que visam o seu enfretamento. A inclusão das pautas da Educação das Relações étnico-raciais, da implantação da lei Federal 10.639/03 e 11645/08, em suas múltiplas experiências pelo país, tem sido um sinalizador positivo, para a mudança das práticas discriminatórias ainda existentes nas escolas.

Não me deterei em discutir ponto a ponto os argumentos apresentados pelo autor do texto “As bonecas de Fernanda”, pois vários deles além de acintosos são também infundados e de nada servem à causa da igualdade que é tão cara à sociedade brasileira, pois o nosso debate não se trata de posicionamentos pessoais relativos à crenças também pessoais, e sim, de um posicionamento político e comprometido diante da política pública de educação, tarefa da qual não posso prescindir, pela responsabilidade do lugar que me foi confiado.

Vivências 

As/os educadoras/os que rejeitam o Programa ALFA e BETO, e consequentemente, recusam-se a trabalhar com o texto “As bonecas de Fernanda” tem consciência que a interpretação de textos e a apropriação das mensagens  neles contidas é algo subjetivo, e está diretamente associado às experiências  e vivências individuais. Portanto, o entendimento que cada criança, cada jovem terá das referências ao bom, ao belo, ao valoroso, ao positivo, estará diretamente associado às suas percepções e experiências pessoais, de valorização ou negação, no imaginário infantil fértil, e muitas vezes, negativamente marcado. Se a boneca bonita  é a branca e de olhos azuis, qual a referência positiva gerada na criança que nunca viu uma boneca negra, de olhos escuros e cabelos crespos, sua semelhança, ser também a considerada a  bonita?

A discriminação do negro e do índio no livro didático foi enfaticamente denunciada, e precisar ser enfrentada, não se admitindo que ainda sejam usados textos, posições e/ou práticas com qualquer possibilidade de representação negativa ou de agressão a auto-estima desses povos. E aqui falamos do racismo, da naturalização da supremacia branca, o que gera o fato de que algumas pessoas tenham dificuldade de identificar os problemas contidos no material do programa Alfa e Beto. Essa naturalização manifesta no campo da estética, “cega” tanto escritores como leitores, conduz à exclusão da diversidade e assim, da  riqueza  das diferenças.

 Pacote Pronto 

Qualificar os milhares de professores da Rede Municipal de Educação de Salvador, que se recusam a utilizar o material do ALFA e BETO como despreparados é um profundo desrespeito com a formação desses profissionais. A falta de diálogo entre a Secretaria municipal de educação e os professores no processo de escolha da metodologia proposta pelo Instituto Alfa e Beto é o maior responsável pela referida incompatibilidade. Daí o atributo de “pacote pronto”. A democracia e a participação não devem ser meras alegorias no processo educativo, elas são inerentes à construção de metodologias pedagógicas eficientes, uma vez que ao se respeitar o conhecimento dos professores e estudantes que estão na linha de frente da educação, evita-se gastos com a implantação de projetos educacionais inadequados.

Em 04 de março de 2013, a professora de prenome Regina, declarou o que pensa sobre o material no site da revista “Caros Amigos”, “O texto pode parecer inocente – e talvez a intenção de seu autor não tenha sido discriminatória, mas quem está numa sala de aula com 99% de crianças extremamente pobres e negras, sabe que este texto provoca sensação de inferioridade em várias crianças. O estereótipo da boneca “feia” casa totalmente com o pobre: em várias passagens, as crianças se identificam com a boneca feia – ela não tem nada (“não tem corda”, “tem pouco cabelo”)!!! É o estereótipo do pobre em pessoa! Por que a boneca loira é a bonita?? Estas coisas reforçam o sentimento de inferioridade de nossos alunos. Estou em sala de aula e sei bem do que estou falando! Dentro da realidade escolar, vemos as crianças se dizerem feias, porque são “pretas”…ou criticarem-se mutuamente por conta de sua condição social. Não sei como é o livro original de Alexandre Azevedo na íntegra, mas o texto que está no programa o qual tive acesso porque sou educadora da rede municipal de Salvador e afirmo, sim, que existem fortes estereótipos ali”.

 Arrogância Racista

Um elemento interessante a ser discutido é a arrogância gerada pelo racismo que nega aos vitimados a capacidade de discernimento, ou seja, se de fato sabem como identificar práticas discriminatórias. Não satisfeitos buscam desqualificar a denúncia como fruto de algum recalque na infância ou adolescência da vítima. “Vocês enxergam racismo em tudo, vocês são complexados”.  Vale lembrar que face à complexidade do racismo e suas manifestações, ele está presente nos detalhes do cotidiano, sem tréguas, prescindindo do próprio conceito de raça, como ainda pensam alguns incautos. O racismo é mais do que manifestações preconceituosas de comportamento no âmbito das relações privadas, ele estrutura as relações de poder em nosso país. É contra isso que nos levantamos diariamente, sem recalques, complexos ou rancores, pois somos cônscios de quanto tem custado ao Brasil, o desperdício de vidas, talentos, tempo e recursos,  voltados para a manutenção dos privilégios raciais herdados da Casa Grande. Portanto, defendemos o avanço, o desapego às idiossincrasias pessoais, e  ruptura com a zona de conforto gerada pelos privilégios raciais.  Transformar assim, a indignação arrogante, muitas vezes traduzida no questionamento “ora, como podem me acusar de racismo?”, em algo eficientemente pedagógico, sugiro começar com a leitura das obras de Petronilha Silva, Eliane Cavalleiro, Ana Célia Silva, Kabengele Munanga, dentre outros relevantes intelectuais.

Crianças Repetidoras 

A nossa crítica, ao conjunto de materiais do Programa Alfa e Beto, é justamente porque eles formam crianças repetidoras, sem o desenvolvimento da  capacidade de analisar o que está sendo explicado. Uma criança que reconhece palavras, mas não compreende o significado delas não pode ser considerada alfabetizada, muito menos, educada, junta-se em coro com as manifestações das/os professores/as de Salvador,  e às críticas de educadores de outras cidades de Sergipe, Rio de Janeiro, São Gonçalo e Porto Alegre, que apresentaram ações junto ao Ministério Público desses Estados, demonstrando  posição construtiva em um debate democrático e plausível na busca pela promoção da igualdade entre os povos.

Como bem disse a professora Maria Aparecida Bento, “a escola é também o primeiro espaço de tensão racial. É onde a criança vai passar por suas primeiras experiências de decepção e de discriminação”, todos os seres humanos têm as suas preferências e isso deve ser respeitado. Provocar a empatia natural é impossível, mas temos a obrigação de praticar o convívio respeitoso entre as diferenças.

 Diálogo e Diversidade

Que bom que, diferentemente de Monteiro Lobato, que nada poderá fazer a respeito da revisão da sua obra, o autor, Alexandre Azevedo,  está vivo e poderá dialogar, reconhecendo a igualdade presente na diversidade brasileira, atualizando assim, o seu discurso e posicionamento.  Parafraseando o grande educador Paulo Freire, “o professor não é aquele que ensina, mas o que possui uma enorme capacidade de aprender”.  Caminhemos assim, em prol da diversidade brasileira, aproveitando a ação “oguniana”  dos que lutaram e propuseram  a Lei 10.639/03, que trata do ensino da história da África e afrodescendentes nas escolas, para conclamarmos as/as escritores para produzir livros que respeitem a diversidade a ponto, por exemplo, de tornar mais frequente o uso de bonecas negras e indígenas  em contos destinados às crianças brasileiras,  as quais infelizmente, se acostumaram a não ter as suas diversas belezas retratadas nos livros e na mídia.

 

* Artigo publicado em 03/04/2013 no portal da revista Caros Amigos

 

Sílvio Humberto dos Passos Cunha

Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana

Doutor Economia/Unicamp

Conselheiro Estadual de Educação do Estado da Bahia

Presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal de Salvador

Vereador de Salvador (PSB)