O relato dos moradores de Ilha de Maré durante a Audiência Pública promovida pela Comissão de Reparação da Câmara Municipal de Salvador, no dia 11 de junho de 2015, foi deveras impactante. Não foram relatos de sofrimento no sentido piegas ou de autocomiseração, mas gritos, clamor de cidadãs e cidadãos cônscios do seu direito à vida e ao trabalho. Cientes do seu direito a viver em comunidade, de ir e vir, à saúde.  Enfim, a exigir algo simples e vital: respeito à dignidade humana.

A Ilha de Maré vem sendo, ao longo dos anos, vítima dos efeitos da poluição gerada pelo modelo de desenvolvimento industrial instalado na Baía de Todos os Santos. Se de um lado  faz crescer o PIB baiano,  de um outro lado vem em escala crescente reduzindo a qualidade de vida dos moradores da Ilha de Maré. Triste memória a explosão no navio Golden Miller em 17.12.2013, que contaminou com o derramamento de substâncias tóxicas a Baía, além de provocar uma situação de desespero entre os habitantes da Ilha. Segundo nota pública distribuída à época pela Associação de Pescadores e Pescas Artesanais  era uma tragédia anunciada. Hoje, de acordo com os relatos feitos à Comissão, a comunidade convive com inúmeros casos de câncer resultantes da contaminação por chumbo e cádmio. Ouvimos que outrora era comum a presença de centenários na comunidade, hoje é uma perspectiva que se rareia.

Apesar de o racismo e suas manifestações violarem sistematicamente esses direitos, mariscadeiras, pescadores e seus familiares, a gente da Ilha de Maré, apesar de cansada por não encontrar soluções efetivas e imediatas para os seus graves  problemas, permanece  firme na resistência quilombola, pois estão em jogo o presente e o futuro das suas vidas, das  suas famílias e da comunidade, enfim o seu território.

A audiência foi também reveladora do conflito entre modelos de desenvolvimento econômico. De um lado da margem, a comunidade de mariscadeiras e pescadores com saberes e fazeres tradicionais que lhes asseguram a sobrevivência e abastecem a Soterópolis com pescados e mariscos, do outro lado da margem o modelo tradicional de desenvolvimento econômico tecno industrial a produzir bens intermediários e finais. Ensina-nos, um dos moradores “não somos contra o desenvolvimento, mas não venham nos achatar”.

A frase acima aponta que os efeitos da poluição atmosférica e marítima sob a Ilha de Maré não são uma questão tecnológica visto que é possível utilizar equipamentos que mitigam os efeitos danosos ao meio ambiente e preservam  os meios de vida das pessoas que vivem das águas. Assim, por que simplesmente não o fazem? O pouco que tem sido feito por esses agentes poluidores, só o fizeram sob pressão face a ação mobilizadora da comunidade. Ao fim e ao cabo, a resposta encontra-se no campo das escolhas políticas, isto é, das vozes que são ouvidas, as vozes que são silenciadas, o moderno (avançado) versus tradicional (atrasado). Quem tem o direito de ser protagonista do desenvolvimento socioeconômico  sustentável?

O povo da Ilha de Maré tem direito a escolher seu desenvolvimento. Significa ter direito a fazer suas próprias escolhas e quando estão a exigir o direito ao trabalho,  direito à saúde,  direito à vida digna e saudável, as respostas dadas pelos entes federativos são insuficientes, paliativas, protelatórias, típicas dos que não reconhecem o protagonismo da comunidade, seus saberes e fazeres, enfim seu conhecimento.

Os depoimentos prestados à Comissão Municipal de Reparação foram riquíssimos, cidadania ativa na veia, o  que denominamos de “nada sobre nós, sem nós”. A comunidade propôs com radicalidade: desobediência civil, não deixar as urnas eleitorais descerem na Ilha; ocupar a  prefeitura para serem vistos.

Entretanto, tudo indica que as mariscadeiras e pescadores terão que deixar mais uma vez  os seus afazeres, sua lida diária para irem à prefeitura afirmar que a Preta é mais do que um nome de restaurante, tornado cult e frequentado pelos AAA da Soterópolis. Preta  é a cor da comunidade que clama  por seus direitos de viver sobre si, saúde e educação pública de qualidade, oportunidades dignas, como elas dizem quero mariscar e pescar não quero fazer outra coisa. Portanto, não sejamos apenas apreciadores da boa comida e da beleza paradisíaca  da ilha, sejamos solidários com os problemas da gente da Ilha de Maré. Sejamos todos Ilha de Maré porque, de fato, as pessoas são mais importantes do que as coisas!

Sílvio Humberto Cunha é doutor em Economia e vereador de Salvador (presidente da Comissão de Educação, Esporte, Cultura e Lazer e membro da Comissão de Reparação).