Confira artigo do presidente da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo, em parceria com o jornalista Emiliano José, sobre o atual drama vivenciado pela África com o Ocidente e a COVID-19, publicado na Revista Raça: “África: vírus para todos e vacina para poucos”

Segundo o Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Ghebreyesus: “os países africanos foram deixados para trás pelo resto do mundo”, quando se trata da vacinação contra a Covid-19 que já ceifou a vida de milhões de pessoas mundo afora.  Os números não o deixam mentir. Apenas 2% das 5 bilhões e 700 mil doses das vacinas que já foram aplicadas no mundo foram destinadas ao continente africano, representando aproximadamente 3,5% da sua população vacinada, num contingente de 1 bilhão e 350 milhões de pessoas. 

Isto é não é apenas um número. É um crime. Crime de lesa humanidade da qual a África, mais uma vez está sendo vítima. Pra que tenhamos ideia da gravidade que isso representa, o índice mínimo indicado pela OMS é de 60% da população vacinada para que o Covid 19 seja controlado e a população esteja segura. Enquanto isso, os países do chamado primeiro mundo (Europa, Estados Unidos, China e Japão) estocam milhões e milhões de vacinas para hipotéticas doses de reforço. Os laboratórios, mercadores da saúde, seguem aproveitando-se da pandemia, e ganhando bilhões.  

A situação é tão grave, apesar do silêncio ensurdecedor das grandes potências ocidentais, que o enviado especial da União Africana para a Covid-19, Strive Masiyiwa, fez um apelo dramático para que os fabricantes facilitem a venda de vacinas para o continente, lembrando inclusive que a União Africana havia criado um fundo próprio para a aquisição. Ainda assim, os fabricantes nunca deram “acesso apropriado” para as nações africanas adquirissem a vacina. É o velho, eficiente e criminoso racismo estrutural. 

Apesar dos discursos e promessas generosas feitas pelas autoridades ocidentais nas mídias, segundo a France Press, a média mundial de vacinas atualmente é a seguinte: “9 doses de vacinas para cada 100 habitantes na África, contra 118 nos Estados Unidos e Canadá, 104 na Europa, 85 na Ásia, 84 na América Latina e Caribe, 69 na Oceania e 54 no Oriente Médio.”. Os números não mentem jamais: revela uma espécie de conspiração contra a África, como se fosse Continente a ser desconsiderado, condenado, a revelar o empedernido racismo e também a desnudar a ignorância: sem debelar o vírus em todo o mundo, ele permanece como ameaça permanente. Nas pandemias, não há ilhas paradisíacas. 

E não é por falta de esforços dos países africanos. Antes mesmo da pandemia se instalar, a União Africana criou o CDC África, (Centro para Controle e Prevenção de Doenças), com base na experiência com o ebola, mas vacinar não é algo simples. Tem que haver logística e essa logística é cara. Segundo o pesquisador guineense Augusto Paulo e Silva “muitos desses 55 países tiveram que devolver vacinas porque não conseguiram aplicá-las por falta de dinheiro para sustentar as campanhas. Precisam de câmaras frias, geradores. E como o Estado está endividado, não tem como bancar isso. São problemas estruturais que vêm lá de trás e que foram exacerbados pela pandemia.”. 

Ou seja, a África continua sendo vítima da sanha predatória do mundo ocidental que durante séculos explorou de forma predatória suas riquezas além de ter submetido o continente ao colonialismo mais brutal regado a toda de sorte de violências, sendo a mais grave delas o tráfico de milhões de seres humanos e sua consequente escravização. 

Portanto, se não forem adotadas medidas sérias e urgentes para que a vacinação alcance o continente africano na amplitude e velocidade exigida pela OMS, a região será mais uma vez vítima da indústria da morte e da insensatez que assola o mundo. Para o diretor geral da OMS, “a prioridade deve ser dada a distribuição da vacina para todos os países e não apenas para as nações mais ricas como está acontecendo até agora”. 

Não se pede muito: quem guarde no coração alguma solidariedade, quem hospede na alma uma consciência antirracista mínima, quem compartilhe a ideia do internacionalismo entre os povos, quem enxergue em África um Continente a quem tanto se deve por civilização e cultura, quem no Brasil não tenha se esquecido dos quase quatro séculos de escravidão, de tanta violência contra africanos escravizados, quem tomado por esses sentimentos, pensamentos e emoções, levante a voz, grite, proteste – são nossos irmãos. Nem desejando, por qualquer razão, é possível desconhecer isso. 

Quem não o fizer, revelará ignorância, e aí pode vir a aprender nossa história e mudar Ou desumanidade, desprezo por outros seres humanos ao abrigar racismo e intolerância. Aí é doença mais grave, muito mais difícil de ser combatida. Vamos em frente. Acreditar na parte generosa da sociedade brasileira, aquela avessa a quaisquer genocídios, a quaisquer racismos, partidária do amor entre os povos, necessariamente diversos, a pensar na sociedade democrática a ser restabelecida aqui, construída em todo o mundo. Este Brasil, não pode esquecer, ignorar África, ignorar nossos irmãos. 

Vacina deve ser para todos e não para poucos!